Uma adega do outro mundo


 
 
Na Adega Moura, sempre apinhada de gente boa, discutia-se de tudo um pouco. Política em voz baixa, futebol em discussões acaloradas, com apostas e sadias rivalidades clubísticas.
Ainda mal sabia o que eram essas “casas de má fama”, os tascos e não tascas como faz questão de sublinhar o historiador Hélder Pacheco, quando um dia decidi espreitar pela porta “Far West” a Adega Moura, ao Monte Pedral, onde nasci e vivi com os meus pais. Anos 60, tempos de fome e miséria (parece que o ciclo da vida andou para trás e agora os governantes têm o descaramento de dizer que “vamos continuar a empobrecer”…) quando a cidade andava a pé ou viajava de eléctrico, milhares de bicicletas nas ruas e um carro de vez em quando. Nesses tempos, o Porto cidade e território estavam cheios de fábricas de fiação e tecidos, estamparia, máquinas industriais (como a EFI-Eduardo Ferreira & Irmão, ao Palácio, hoje, condomínio de luxo) e por perto da rua onde nasci, à Rua de Nogueira (mais tarde baptizada por Rua do Padre José Pacheco do Monte) existiam clientes certos na antiga Adega Moura, geralmente gente pobre, operários das antigas fábricas situadas nas redondezas, como A Fosforeira, à Rua de Silva Porto, junto ao Centro Hípico do Porto; Fábrica de Tecidos do Bom Pastor – onde chegou a ser sócio da empresa o cineasta Manoel de Oliveira – mais a Fábrica de Fiação e Tecidos a Vapor de Salgueiros, uma importante unidade industrial de tecelagem e tinturaria que empregou milhares de homens e mulheres em turnos permanentes. E mais uns quantos clientes habitués, uns copos de tinto por entre jogos de dominó e sueca.
Copos de tinto e dominó
A Adega Moura sempre foi o ponto de encontro desta gente humilde e trabalhadora que, neste simples espaço de tertúlia fazia amizades e encontrava a nesga de felicidade para o seu dia-a-dia sombrio e triste. E ao contrário do que diziam as más línguas da época, a Adega Moura que eu conheci nunca foi um lugar de bebedeira, antes um espaço de convívio dos mais pobres, com uma “caixa de 20 amigos” a fomentar solidariedades e onde muitos entregavam alguns escudos para a primeira excursão familiar. Recordo-me de tudo isso com nostalgia e ternura. E revejo os grandes quadros emoldurados alusivos às principais figuras da República dependurados por cima dos pipos o que, em tempo de Ditadura salazarenta, tornou este estabelecimento num espaço diferente na cidade e para mim, mágico. A Adega Moura não foi só um simples lugar de copos de vinho. Fez História e divulgou a gente que mal sabia ler ou escrever alguns dos heróis que derrubaram a Monarquia.
Depois, existiu outro aliciante que, naqueles Verdes Anos observei quando passava pela Rua de S. Dinis, após ter visto mais um melodrama de Joselito (o actor embalou corações e foi acusado de tráfico de droga) no Cinema Vale Formoso de boa memória.
Presunto e bolinhos de bacalhau
Naquele tasco sempre apinhado de gente boa, com sandes de presunto, bolinhos de bacalhau e tijelas de tinto, discutia-se de tudo um pouco. Política em voz baixa, futebol em discussões acaloradas, com apostas e sadias rivalidades clubísticas. Aos domingos o dia transformava-se numa festa. Logo após o almoço, o senhor Moura (que eu conheci) fazia questão de colocar a telefonia em alto som (até na rua era audível) para toda a gente acompanhar os relatos de futebol do Salgueiros (o clube mais republicano do Porto), Boavista e Leixões, mais o Futebol Clube do Porto, Benfica e Sporting. E claro, mais uns copos para festejar as vitórias dos clubes da Invicta, sempre rivais, mas fraternais quando estavam em jogo os clubes da Mouraria.
Hoje, já restam poucos lugares com história e idênticos à antiga Adega Moura. Na minha memória afectiva mantenho as frases típicas dos fregueses (“quero um copo bem cheio, sem gravata”), as discussões sobre futebol, a amizade que testemunhei naquela gente simples, o décor daquela adega única portuense. E o sorriso sempre gentil do senhor Moura.






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