De noite todos os gatos são pardos



A Rua de Júlio Dinis tem duas caras. Durante o dia, o trânsito é infernal, filas de automóveis, autocarros, buzinadelas, gente apressada. Até parece que fervilha de negócios, agências bancárias coladas umas às outras, cafés, confeitarias. À noite, o retrato é outro. Não se vê viva alma. Só os mendigos dão vida na cidade deserta.
 
Aparenta pouco mais de 60 anos a mulher sentada à porta da chique Vogue, à Rua de Júlio Dinis, Boavista, a dois passos da Casa da Música. É o seu refúgio nocturno. Chega por volta das 8 da noite, enrola-se em grossos cartões, alguns cobertores e tenta adormecer. Não está só. Por perto estão homens e mulheres encostados às esquinas das montras iluminadas a meio gás.
Uma fila de olhares vai mirando quem circula. Como quem diz: este “território” é nosso. São capazes de ter razão: por uma noite, por todas as noites, aqueles lugares de passagem e entrada dos prédios transformam-se em dormitórios da cidade desumanizada.
Muitos deles falam em alta voz. Parecem zangados, discutem trocos, miudezas. Só o futebol alimenta rivalidades e os “treinadores de bancada” falam do penálti que “ficou por marcar”, as “muitas oportunidades de golo por marcar…” Frivolidades. Estão todos no mesmo barco.
Pernoitam nas entradas dos prédios e sobrevivem da solidariedade. E aguentam a pé firme a chegada das carrinhas com sopa, leite, pão, fruta, de vez em quando a peça de vestuário para aguentar melhor o frio, a chuva e as baixas temperaturas. “Os voluntários são os nossos anjos da guarda”.
Nesta frente urbana, exemplo de arquitectura modernista do Porto construída em 1958, de autoria do arquitecto Benjamim do Carmo Azevedo (autor de outros trabalhos com Agostinho Ricca), só os escritórios e o comércio dão alguma vida ao local. Já quase ninguém vive no quarteirão da Rotunda da Boavista/Rua de Júlio Dinis.
 Uma tristeza, mais um sinal de abandono, decadência cívica e urbana.
Como deixou de ser “chique” fazer compras nesta zona da cidade, os donos das lojas vão resistindo à crise com promoções, saldos a 50% e outras seduções. Algumas casas comerciais mudam de ramo constantemente, do dia para a noite, outras fecham para sempre. Foi o caso da Livraria Bertrand, dantes montras vistosas com as “últimas novidades” literárias, situada a dois passos da histórica Petúlia, frequentada por adeptos do FCP, a segunda casa do mítico Pedroto.
Rua de Júlio Dinis: já foi eixo viário de grande comércio, compras até tarde, aos sábados passeios apinhados de gente com sacos de roupa e presentes.  Por perto, o Centro Comercial Brasília atraiu milhares de consumidores, até turistas de Espanha vinham em autocarros para comprar “recuerdos”. Agora, poucos são aqueles que se atrevem a entrar pelos corredores quase sempre desertos.  Até a “Rapariguinha do Shopping” passou de moda.
Na rua que lembra o autor de “Uma Família Inglesa” restam algumas casas de relógios e ourivesaria, moda e pronto-a-vestir, mais o célebre Orfeu e o Orfeusinho, o café do poeta e jornalista Manuel António Pina, os encontros e as memórias de um homem de causas, generoso, dotado de grande inteligência e afável. Coisa rara numa só pessoa.
Como as cidades têm várias  imagens e muitas vezes mudam a sua paisagem urbana e sentimental, lembrei-me de um poeta admirável, Daniel Filipe, e de um livrinho de estimação: ”Discurso sobre a Cidade” (Editorial Presença, 1977): “São múltiplas as faces da cidade. Matinal ou nocturna, para a conhecer é indispensável descobrir todos os seus disfarces. Quem dela se abeira em busca do rosto único e imutável, busca a simplicidade que é engano, a evidência no que é íntimo, misterioso, oculto”.

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